sexta-feira, 17 de junho de 2011

Humano e abelha

O suntuoso calor da manhã havia feito Lia queimar. Ao meio-dia, já alguma vitória era conquistada, pois ao respirar acreditava sentir os alvéolos do pulmão em reboliço, preparando sua fuga. E como todo bom desconforto enfermal, ainda perdurava nas maçãs de seu rosto um escarlate de pele chamuscada - contrastando com a frieza dos dedos, provocando fumaça. Febre.
Chegou, com os devidos esforços, ao consultório médico, onde uma esbelta secretária negra trabalhava inquieta no canto direito da sala retângular. Os pés número 38 - calculou - debatiam-se no alto de um sapato marrom que atritava com o piso azulejado. Muitas das mulheres em espera na saleta repetiam o movimento: explícita anciedade. Não há nada novo, pensou, por que tamanha impaciência? Já aderindo à série de gestos ritmados, mal terminando a divagação. Cada mulher conforme seu grau de horror à espera.
O doutor era famoso por suas peculiaridades, dissera-lhe a vizinha ao entregar-lhe o endereço pedindo que fosse (de certo preocupada com todas as vezes que a acolheu em surto pelas madrugadas à dentro). Ora distribuía diagnósticos na velocidade em que a secretária atiçava a lareira, ora fumava intermináveis cigarros na janela entre uma consulta e outra. Tais variações de tempo despertavam curiosidade e singela dúvida em suas empregadas - nos últimos dois anos foram cinco contratadas, e para cada uma demitida uma medida de histórias espalhadas. Era a primeira vez de Lia naquele lugar, aguardando.
Então sentou, sem acomodar o corpo. O retângulo branco exagerado, não deixava-a abrir totalmente os olhos secos. Tantas pessoas transitando em direção à secretária! Todas parecendo despencar em um fosso, que certamente havia atrás da mesa, uma vez que Lia não as via retornar de lá para outro lugar. Junto à tantas outras, uma moça sobressaiu-se em sua calça azul-marinho. Havia um inseto grudado na brancura do terno e ela custou a perceber o inquilino, carregando-o contentemente - sabe-se lá desde onde.
Com um tapa certeiro, lançou-o para o meio do corredor feito de cadeiras, brindando o chão. Agora, já era possível saber que o que contorcia-se no chão era uma abelha, locomovendo as patinhas tão rapidamente - quase invisível. Sabia que o desfecho de sua vida de abelha-de-cidade-grande estava por vir, inevitável: onde andava agora, perdida dos demais insetos no rejunte da lajota, estava em sua via sacra, um lugar pouco seguro.
Pacientes foram e voltaram. Lia esqueceu o bichinho desemparado por longos intervalos, até o olhar pousar nele sem querer, assim que a faxineira escancarou a porta empunhando pá e vassoura. Mas já ao término da limpeza, não é que a abelha gordinha permaneceu sem ser vista? Talvez dentre as duas fêmeas a mais sortuda. Chegava então aos pés de Lia, quase na sola acolhedora do seu sapato, quando a carrasca da vassoura a avistou. Foi levada. E Lia chamada.
Notou as cortinas do consultório, vendo-as do corredor: panos quentes dançando de canto em canto, arrastando a metragem longa de tecido, pêlos e crinas como fantasma. Ainda de frente para a janela estava o médico, com as mãos cruzadas nas costas, despreocupado: tudo em primeiro momento era muito bem executado pela secretária negra. Deitou a jovem moça na cama hospitalar, percebendo logo suas extremidades frias, onde pôs três pequenos cobertores e uma almofada. Abriu uma portinha ao lado, deixando sair um gato peludo que prontamente pulou e deitou em cima de seus pés magros, transmitindo calor mamífero. Cobertor, almofada, gato. Percebeu alguém atrás da portinha entreaberta, sorrateiro, observando-a. O gato que já dormia também percebeu- levantou a cabeça levando as orelhas para posição de alerta: os gatos sempre sabem, pensou. A negra então alertou-lhe: "Relaxe".
"Extremidades tão geladas que parecem molhadas..." disse o médico, ainda sem virar-se. "A cama quente é fictícia - na verdade é um lago." Completou.
Então deu o ar de seu rosto à Lia, amordançando sua boca: "Fiquemos livres de palavras ao vento. Elas, agrupadas, não são na verdade tua expressão. Nem nunca serão - mesmo porque quando abristes os olhos pela primeira vez tragaste o sopro da inibição. Fora infantil, sim, tua insegurança adocicada." E isentos de sílabas lapidadas por perturbações, o médico baixou as pálpebras e subiu-as, lentas, anunciando o olhar nu e denso - que fez-se presente na sala, perfurando Lia. "Rosto boêmio, à menor dança de cílios lancei-te esquecimento! Face desconstruída, de quem apagou as linhas com medo de escrevê-las." Disse, seco.
Levadas da mesma maneira. E ambas nunca mais vistas.

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