segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Lia desajustada

Rumando para o vermelho. Protegendo-se de um inimigo invisível que cola no rosto das pessoas em volta. Escuta sussurros, quase que por completo indecifráveis - mas ainda é português.  Apavora-se, não sabe como agir, não entende-se com ninguém para conversar. O que era começo de encontro pessoal, mudou rapidamente e ruiu para um bagaço seco. Assim mesmo, congelado, habitando a fria sibéria da alma.
Pensa coisas ridículas, como não estar perto de ninguém para não atrapalhar. Dorme onde pode remexer-se na  inquietude sem incomodar o sono alheio. Sua liberdade é a solidão? Onde irá parar, sendo de lugar nenhum? Que compulsão por urinar incômoda! E pensar que quando pequena sonhava ter uma penteadeira, estilo cômoda de avó ou mãe. E mais um espelho com cabo bastava para a realização. Agora... se levantar para ir ao banheiro, suas pernas a levarão para os fundos - escuridão atraente.
Não sente sequer vontade de conversar, não consegue expressar-se! Porém, no início, não era isso o desejado? Ser sem sentimentos? Como pode tentar lutar contra sua essência? Alguém responda! Mesmo que estejamos bem de baixo de uma árvore enorme durante um temporal típico litorâneo, com seus encontros catastróficos de frentes frias e quentes, raios muito próximos, canivetes chovendo, goiabas podres despencando dos galhos - que pisoteia para aliviar o pânico.
Há uma rede na árvore, abrigando uma mulher de meia idade, tapada com um confortável cobertor, puxando assuntos com Lia, interessando-se por sua situação de vida em geral. Ela sofre há meia hora de dores incansáveis no peito. Vejo pura queridisse, buscando distração para a dor aguda cessar. Ao contrário de Lia, não está com medo. Ambas recolhidas na árvore, borrifando cheiro de goiaba  para todos os lados. Como queria abraçá-la, transparecer que a adoro. Acho que nem Deus sabe o quanto gosta das pessoas especiais em sua passagem de trem pela terra. Não quer morrer sem que acreditem nela!
Faz coisas sem nexo algum pois não compreende o que dizem-lhe - é tudo tao complexo! Um maço de cartas embaralhadas! Importa-se muito com todos, algo a impede de demonstrar. Tentou dizer algumas palavras, mas quem acredita em uma desajustada? Anda pirada, sentindo-se fora da realidade, em desrealização quase que total. Por favor, perdoem-na, não é insuportável por que quer. Excesso de coquetéis molotov destruíram-na.
Não digam que está fechando o leque de seu horizonte. Suas relações com humanos amigos já são por si só complicadíssimas. Não suporta ceder seu abraço, seus lábios- repudia casualidades amorosas. Não desperta paixões, talvez admiradores, e só.
Claro que todos são diferentes e alguns não se entendem, mas Lia é um caso de deslocamento extremo. No trabalho, foi uma batalha contra os tremores, desmaios parciais, correntes de ar polar nas pernas - olhou para o ar condicionado, nada havia mudado. Só ela sentiu. Em que paralelo dimensional encontra-se? O que fará? Não sabe mais administrar onde vive, quem está por perto, os olhos macabros de desconhecidos na rua. No corredor, debocham de sua aparência distinta, sua fala enrolada, vendo-a como um vidro trincado. Vitral roxo rachado. Locomovendo-se com dificuldade para não beijar o chão...
A casa tem paredes de madeira e, ela jura de pés juntos: está escutando as pessoas conversando - o lugar tem as paredes de madeira. Uma reunião às escondidas. Perdeu a noção? Sabe apenas que gostaria de preservar quem ama ao seu lado... Mas não sabe mais como segurar a barra. O que decidirão fazer com ela? 
É véspera de ano novo e está muito pior.
A cada período de surto a insanidade agrava-se : destrói mais um pedacinho de si. No fim, não haverá o que pôr em seu caixão - enterrem seus diários!
Ameaçadores seres, deixem-na virar nessa cama. Senhoras, não exaltem-se! Sinte terror de vozes vorazes.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Aquarela epitelial

Meus pés estiveram descalços na relva. Os machucados abertos derramam um estranho líquido cor de cera quente, que verte da ferida mesmo após a noite de briga com o sono. Os lençóis estão empapados de suco grudento? Queria poder saber.
O massacre pede piedade: reviro então a geladeira - comunitária e empilhada de tudo o imaginável - em busca de algum resto de comida. Com a panela em mãos encosto-me no fogão e, de colher  como criança, como o arroz com molho.
Logo após, resolvo sentar onde a corrente de ar passa -tão gelada! Cruzo as pernas e vejo a estradinha de gosma que une minhas úlceras frescas, ladrilhada com hematomas tão escuros! Quase nebulosas epiteliais. Mesmo a lembrança do gatinho Syd - que trouxe de casa gravado na arranhão na perna - foi enfeitada e agora imita pintura de aquarela.
Os vizinhos incomodam com suas conversas exageradas e fogos de artifício, fico contente que a brisa acalme minha cabeça que pega fogo - no plano visível também. De cabelos cor de cobre, finalizo minha obra de arte dolorida, pincelada no próprio corpo - ou carcaça.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Exílio parte 41

Existo para mim mesma. Para o espectador faço tudo sempre igual. Mal sabe que todo dia luto por um novo visto de uma temporada, durando algumas horas ou dias, para embarcar a mais  um singular refúgio.
Inexistente, quando comparada ao coral de pássaros sendo livres na minha frente. Coragem de voo que faria-me mais verdadeira.
Gênio indisciplinado, escudo programado. Não baixo: sol algum é capaz de queimar-me a pele! Nadar, correr, voar com o próprio corpo é realmente esgotador...
Estava vermelha e cabisbaixa, tomada pelo cansaço, até o momento em que caí nas graças de uma bicicleta - tudo ficou tão mais perto! Tão mais rápido. Nem mais afobado... Mais esperançoso e macio!

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Feitiço de jasmim

Nelica e Lia costumavam ter em casa incensos de mel e ervas especiais, mas na manhã em que despertaram para cair dentro do carro e rumar para a praia, o escolhido fora um floral: aroma de jasmim. Assim começara o dia.
No quartinho da pousada em que aterrissaram não havia nada de bom, até a arrumação da cama de casal ser percebida: lençol caseiro, dois travesseiros e, opa! A fronha de um deles era maravilhosa. Repleta de flores, em certos momentos praianas, as vezes havaianas, talvez com um quê de prédios em fotografia urbana. Nelica apontara para a pintura modesta, que vestia o retângulo esponjoso de Gaia, dizendo: "Preciso desta fronha para mim. Vou levá-la comigo."
O odor de jasmim antes de sair de casa, ao certo, incitou-a a adorar qualquer planta açucarada que enxergasse, que surgisse diante de seus olhos durante a viagem. De relaxar em relaxar suscetivamente a medida que dirigia, batera de frente com a tal pintura resplandescente no dormitório.
Jasmim é a flor mais cheirosa do mundo. Do universo, quem sabe. Atrai e comprime o apego, é sempre percebida e surge um desejo inconsciente de tocá-la. Mas é cheiro! Ar - querendo ser palpável. A alma passa a ser atormentada, a pessoa enfeitiçada não poderá mais conviver em ambientes repletos de árvores floridas! Jardins passam a ser sofridos... Qualquer semelhança com o jasmim quando provada, é inesquecível. Fumaça que é tatuada.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Exílio parte 40

Chave do teu infinito espesso e especial.
Não conquistara teu coração - tomara tua alma obscura que sequer compreende.
Sou um farol intermediando tuas oscilações  e estados dissimulados de espírito.
O que minha boca não torna descritível levo a um plano maior - amor que paira sobre nossas cabeças para todo o sempre.
Crie coragem, pequeno. Rogo para inundar-se.

Rest in peace

Ilustração do "The Poems of Edgar Allan Poe."
O aniversariante inanimado despertara de seu sono, tão leve, no cemitério em que fora sepultado - repleto de adubo.
Levantara embriagado, com seus defuntos acoplados cercando-o. Medíocres, pobres de amor e misericórdia, torturam Lia antes mesmo da visita - cotidiana - ao funeral diário de que participa, em que transporta-se para a boca das covas de véu rendado no rosto, chamuscando a expressão facial. É vulnerável em demasia, nua ao extremo, pensa: 
 - Conto apenas comigo mesma para atravessar a paisagem desértica que habito...
Soltam risinhos mascarados por trás das árvores. Sussurram sobre sua emoção nobre: Clemência! Clemência! Dando-a ares de pena. Pensara em vagas possibilidades de carona para deixar, ainda que por agora, aquela terra molhada retalhada em moradias subterrâneas. Mas todos os carros amigáveis estão lotados - malas ocupam o espaço. Insistira: 
 - Há mais conhecidos viajando e tratarão de me dar um assento.
E novamente, há muita carga... Exclama:
 - O que vou fazer? Bem sei que não devo ser deixada sozinha comigo, no campo de mortos vivíssimos!
Passados alguns momentos sem conectar informação alguma, Lia dera-se conta de que a data de hoje é realmente especial e por algum motivo tropical, merece sangrar. Sente angústia intercalada com picos do sangue fervendo e náuseas de desprezo interno. Enjoo de pisotear o coração. Desejara então buscar justiça... Chegara ao cume de, covardes dessa forma, deixarem-na raivosa.
Para terminar a estadia no campo, chegara a duvidar de si:
 - E se eu for completamente lunática a ponto de tornar a própria criação uma verdade? Ou serão eles, todos eles, que precisam de descanso perpétuo?
De última, Lia decidira encomendar a partitura do réquiem do músico, espreitando tal como Salieri a obra em desenvolvimento.

16/12/2012

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Distinção em lugar igual

A tampa da caneta prende-se ao amaranhado de cabelos, perde-se nos fios molhados vindos do mar. Encontro-a e saboreio-a - salgada, pois as manhãs devem ser inventadas e temperá-las requer um esforço sacrificante. É preciso boa matéria-prima e paz para o dia correr, rolar pela montanha repleta de pedregulhos até finalmente chegar a seu final almofadado. As diferenças dão-se pelas bacias em que tudo é misturado... O que resulta é criado.
Minha cuba forrada de limo traiçoeiro!

Areia no teclado

Cada passo na areia produz uma  nota aguda e ensurdecedora. Piso com maciez para o impacto ser mais leve: ponta dos dedos, meia-ponta e evito fixar o calcanhar. Escalas tão mudas quanto extravagantes, um vendaval vindo do horizonte todo azul crescente, enfumaçado partindo do cinza - soprado até o branco. Alvura natural que dá vida as nuvens...

sábado, 1 de dezembro de 2012

Antes da partida

Lia acertara o despertador para cedinho. Para a vida mudar. Tomara, somente após o ato, consciência da grandiosidade do futuro próximo - que virá correndo no piscar das horas. O caneco de vodka anteriormente perto de si, era tão grande quanto espesso, tal como uma janela blindada. Pensara: para que tal revestimento? A bebida, de qualquer forma, é previamente estipulada e desejada, para o indivíduo não fazer ideia de como chegou em casa inteiro.
Desde os primórdios da noite,  ela estivera em uma encruzilhada tão densa que parecia pura energia magnética. Estagnada permanecera, em meio a demora da indecisão, em cenário urbano indo voltando, sendo racional e insegura. Batalha acirrada, ainda restava tempo de provar a si mesma que existe encanto e felicidade social que flui... E escorrega também em sua timidez pessoal. Para ilustrar primordialmente o desenrolar do alto questionamento que rolava na mente, fizera amizade com uma cadelinha, chamada Luna. Lambidas especiais sem dúvida.
Fora errada, com pessoas certas. Porém, sem mentiras: a boca seca fora somente um empecilho físico para beijos não acontecerem. Solução externada, de quem sente ainda um vazio severo no peito. Seu fundo, de certo, só pode ser feito de um inexorável limo! Situação contendo ainda gotas de ilusão, de uma despedida contornada por uma audição confusa - um "eu te amo" entrara na roda e não fora iluminado? Lia planara sobre as emoções em tempo integral, é cruel. Tornara-se bom não sentir suas moléstias! Entretanto, determinara um grande cessar fogo no paraíso forjado: será logo mais pura lógica e possível sentimento, afastada das ruas cravejadas de memórias, da ultimamente cinza, Porto Alegre.
Encontrará paisagens que tomarão formas novas e ricas, naturalmente- importantíssimo para a tal visão que Lia tem. Desprovidas de lembranças, propícias a sensações particulares! É lindo e tão simples pensar!
O vento, atravessará o espaço minúsculo entre seus fios de cabelo, sem arremessar dardos - ou poeira, como quiseres... o princípio é único: ambas não deixaram nunca de ser carregadas de veneno. Alquimia trabalhada para a agonia perdurar. Transmutará... transmutará e ela crê. Tivera um último cigarro oferecido, mas já não faria sentido.
Parece delicada, essa Lia: mas ou é por falta de um meticuloso observador, ou por que ninguém ousara ( ou não fora permitido) catar - com uma pinça - as lascas de madeira enterradas em sua pele, que são incontáveis detritos cósmicos. Cravaram, grudaram, é uma superfície de gozo para os obsessores! E portanto a maneira que aterrissaram é irrelevante... ficaram, vindos do espaço. Claro que marcas também não são remotas, afinal alguns corpos estranhos são expelidos sem substituto imediato.
 - E é nessas brechas que o presente se contém, espremido. Habitualmente camuflado e logo após vívido como um trovão solto em uma melodia...