quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Jogo do espelho

O encontro estava marcado para logo mais. Ela suava frio. As gotículas pingavam de baixo dos braços e escorriam pela barriga, resfriando-se. Surgiu uma vontade aterrorizante de cair de vez no caos que estava sua cabeça. 
Ainda em casa, imaginou as paredes bordô do bar vestido de festa, já pequenas para os corpos espaçosos de casal eternizado - pois sempre há uma sepultura no meio. Bebeu gole após gole três copos de vinho, inflou o peito de coragem e chamou o táxi. Foi.
O rosto alvíssimo dele, deu lugar a um bronzeado cor de terra - onde nascem penugens que quase formam um canteiro castanho nas bochechas magras. Armou-se como de costume, agora também esteticamente: protótipo de barba.
Farpas disfarçando amor saíram de seus lábios - os mesmos que queria somente beijar. Tornou a existência mais penosa e medíocre! 
Lia vagou por um espaço de tempo minimamente arquitetado por ele para cegar e ferir a si mesmo. Aquela profundeza aquática que são os olhos azuis do ex amante, serviriam para afogá-la e de fato aconteceu.
Incapaz de perceber a esfera positiva que ela lançara-lhe a cada gesto... Impossível destrancar portas emperradas, inútil forçar janelas trancadas. 
O audaz inconsciente, perde as rédeas do ego e desmancha-se em grosserias. Acostumou-se a atuar em qualquer circunstância da vida ligada aos sentimentos. Cai na desgraça que é o medo de voltar-se para dentro.
Ambos destroem-se gratuitamente.
Quando somos presunçosos, começa a verdadeira comédia!

domingo, 20 de janeiro de 2013

Conselho masoquista

                         Temperara com alho fortíssimo o coração. Ambos amantes sofrem, divertem-se com a situação para aplacar a crueldade.
Para o dia de saudade dela:
 -  Abra a porta do roupeiro, olhe para a direita da prateleira de cima. No canto, logo se deparará com um montinho - de aspecto macio e limpo - feito de peças mimosas de roupas feminíssimas, na paisagem sombria do teu quarto.
Abrigam-se no cantinho do móvel velho até o dia de hoje, pegue-as! Bebe teu leite de morango, logo devolva-as no impulso de repeli-las. Gotas do frasco de perfume ali também guardado, podem inchar o algodão e o ar com a essência, borrifada de costume no pescoço de sua dona faltante, que tornava-a entorpecente.
A memória antes já desperta, grita. O que o universo determinara enche-te de medos-  que acorrentas com distorções da frase: O que eu fiz?
Sozinho, bate a porta do guarda-roupas quase que em cena de cinema. Senta-te na baqueta, chora a trilha sonora.
   

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

No leito de hospital

Sirenes de emergência soam mais tristes do que alarmistas. Anunciam que nada é eterno, à medida que arrastam-te pelos corredores brancos. Ouço-a já do leito.
Meus olhos são reflexão, espelho d'água, abraços de adeus. Para estação de chegada não servem, são demasiado frios e não convidam - repelem. Tremo de idéias vagas, partidas e tonturas.
Ainda na cama, bocejo respirando o ar fresco das tardes de outrora, agradáveis e encharcadas de violeta, feitas de cores maleáveis - pintadas de ciano. No quarto, há espaço somente para o ruído, de leve, do ventilador - que dizias ser relaxante - ressoando como aqueles pássaros, fazendo-me acreditar que meu colchão é de grama e a memória presente.
Música de fato, não consigo escutar. As vozes alheias e o som do universo já preenchem meu grito interno de angústia. Ou o coração dilacerado pelo instrumental não suporta.
Fujo das lembranças!
Munidas de esperança,
que altera sílabas, 
embaralha imagens, 
distorce realidades.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Pergunta para Lia

- O que acontece com a porta, quando batemos desesperadamente?
- Os cupins abriram buraquinhos em seu interior, transformando-a em uma espécie de favo de mel amadeirado, que deixaram-na oca e maleável - ainda que revestida por um disfarce de verniz. E a cada batida forte de desespero, despenca mais pózinho da madeira carcomida, que produz barulhinho de concreto caindo de leve. Sei disso, pois estamos agora ambas ocas. A praga roera a madeira por dentro, da mesma maneira que a desgraça roera minha essência mais profunda.


Marcas

Cicatrizes são marcas de guerra, de ferimentos severos e caracterizá-las como "eu sobrevivi" é deveras superficial: elas também podem significar amputações irreparáveis para as quais não há próteses - não há substituição. A vida continua desfalcada e, conviver com a perda é suscetível a mais perdas, entre elas a da sanidade.
O atingido então, questiona-se se não teria sido melhor morrer em batalha. Arrisca, por certos períodos de cólera intensa, dizer que sim e desta maneira os dias angustiantes tendem a aumentar até o colapso completo. Confusão de espaço e tempo, enjoos terríveis -quer expelir todas as lembranças que assolam sua cabeça! Não há conforto, pois como disse, não há reservas das propriedades vitais perdidas.
Muitas vezes a pessoa continua insistindo em existir, crise após crise, que intensificam-se com o passar do tempo. A cicatriz enfim, é enfermidade degenerativa, que após muitos anos decorrerem no âmbito da doença enraizada, o sentimento de perda que habita o ser por completo - físico e espiritual - é tomada também por confusão: somente sente os sintomas sem ao certo ligá-los a sua origem. São marcas que construíram sua personalidade, lotaram de pessimismo a pobre vítima que cresceu inconformada (...)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Visita a terapeuta


Outrora diagnosticada bipolar confusamente amante, hoje com insetos no estômago e arrepios de vontade de um único homem, Nelica bateu em minha porta desejando ter a ficha arquivada. Na tarde abafada apressou os passos para fugir da tempestade - para não resvalar nas pequenas flores roxas de ipê traiçoeiras da rua. Chegara e eu estava de pensamentos antecipadamente alagados - compulsão  que tenho por devaneios encharcados!
"Foi o moço que deixou o microfone cair do terceiro andar" dissera-me. "Que vento o trouxe até minha sacada, de vizinha do térreo?" Perguntara querendo a obvia resposta para agradar seu coração. " Brisa de calmaria." Respondi, entre um suspiro profundo.
E de repente, ficou quente de mais no consultório e a inspiração fugira com o suor do corpo... Que chova mais! Para que eu possa finalizar as frases escritas, ajudá-la a domar o coração jovem inoportuno - que se sobrepõe as estatísticas e renova-se a cada semana.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Labirintite

Meu ano inicia-se com pilares bambos de memórias e misérias.
Quero voltar para casa mas sinto pavor também de lá: minha incerteza é interna.
Pessoas cinzas passam pelos corredores, estou trancafiada em um vão entre as paredes de tijolos a vista, como espectadora transparente de vidas.
Vago pelos labirintos vertiginosos, que são as sobras de campo das construções alheias, pois não encontro uma para mim. 
O ar que chega para ser respirado é carregado de detritos com que abro buracos em meu pulmão - transformo-o ao longo do tempo em um favo de abelha, tomado por buraquinhos. Causo ilusão de ótica quando enxergam-me pelo vão: frenética, em busca do fantástico, tão  magricela e irresponsável...

Sereia inocente

Esmeralda esmaltada de vermelho,
rubi falso de base verde.
Sereia de escama de limão,
tomando sol no limo do rio.
Será que chora, será que percebe,
o pente de semi-joia com que escova os cabelos?
Fios despencam!
Rasgada e ingênua,
ancorada no poço de cachoeira.