terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Natal

Hora de dormir. Tão pequena, já sabe quais serão as próximas palavras - em tom de ordem - de seu centro no mundo recém descoberto: "ajoelhe-se, filha, e peça para papai do céu te proteger". E então fingiu cerrar a porta do quartinho lilás, como já de praxe, para observar calada e certificar-se de que a tarefa imposta será realizada. "Hoje fizeste menina bonita, não terá milho ou tampinhas de garrafa, melhor assim " pensou a mãe, quieta, do lado de fora da porta.
Orgulhosa por estar no quarto, só com a adorada companhia de suas bonecas, ajoelhou-se no canto da cama, cotovelos deitados no colchão - murmurou coisinhas (como viu os adultos fazerem outro dia) e achou que já estava bom, sentia-se bem. Observando-a, cheia de glória, a mãe sai de seu esconderijo zeloso e tanto rígido para apagar a luz. Deitou-se.
Amanhã é Natal... Tantos já foram, pensa. Essa data , ao longo dos anos, passou de inocentes crenças e alegrias, para o momento de reviver a dor de não ter mais pessoas amadas junto
à mesa enfeitada. O que restou da família de outrora, celebrando a - as vezes forçada- união de poucos e saudades de tantos.
Seus pensamentos são cortados de repente, por uma vozinha fina e ainda destreinada à sussurar na entrada do quarto de casal: "mãe, o vovô me disse que demorou muito tempo para ficar bem, mas agora já está bem". Atônita, pediu que a filha dormisse e rezasse para os anjos, antes que o espanto embebido de emoção fosse perceptível - saudades do pai.
Olhos de criança são janelas limpas, para a despercebida realidade com o "ser" é muito mais do que o "existir". Olhos inocentes e vastos!

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Onde os ventos derrubam e a ausência nasce


Na linha da existência, Lia segue em passinhos tímidos, sorrateiros - o equilíbrio é reflexo do tempo, hora beija o chão, hora segura-se em um eventual corrimão (pois não reconhece a mão que impede sua queda) . Passinhos que rastejam à beira do precipício, ventos de mudança que assobiam, dançam, incendeiam! Más não são capazes de trazê-lo de volta em seus longos braços, para o abrigo do seio quente que o chama.
O caminho segue. A ausência é sua posse - é a única que não pode ser roubada quando tudo o mais se foi. Traz consigo a angústia de ter de calar-se, o desespero de manter o laço, cortante e firme, na garganta - para impedir o coração de sobressair-se.
Ela nasce quando faz-se, em dolorosas datas, o desconhecido amar.

Data do fim

Desde aquele dramático final de ano, dez longos períodos de 365 dias vieram- assim, como um tapa. Para ela, os olhos amenhecidos dele eram um convite inigmático para um beijo, e o descanço sobre o peito como se arrancado de um livro tivesse sido. Ele, às vezes, até procurava dentro de si uma emoção para corresponder, ou um pedaçinho que fosse daquele cenário que ela descrevia - pois só assim poderia fazer um esforço para imaginá-lo: era incapaz de ver com clareza o fundo dos olhos grandes dela.
Em uma dessas tardes lentas e abafadas de começo de verão - o décimo - o vento que por ventura passa desfaz a pele sardenta dela, secando seus olhos verdes, fazendo-os cerrar como velhas janelas escancaradas - que não permitiam o descanço já há tanto tempo. O esgotamento era sentido já no portão de fora da casa, que fazia-se por entre o jardim até a porta principal. Cheiro de definhamento, de longos anos chorosos e sugados à partir do fim da noite.
Durante todo o tempo foi e é assim: um corpo que à noite cola os pedaços arrancados pelo dia. O vento morno e o sol, velhos inimigos de quem fora por si mesma condenada à amar a noite soberana, esperando pelo término, sem surpresas, sem seu jovem amante lembrar-se.
No primeiro momento viro o rosto ao vê-la, ainda é dia, fico incrédula. Logo volto, desviando dos chumaços de cabelo ruivo espalhados pelo chão. Em uma cadeira lá estava o físico cadavérico, como se em posição de espera.
Não se morre de amor, o que tem seu fim são as mãos finas e suaves, em belas luvas de cetim ou deslizando sobre as teclas de um piano. O sentimento não pertence ao tangível, vive até mesmo após a morte do sofrimento da carne - persegue. Porisso o escuro: é nele que os corações alimentam-se, produzem luz própria. Talvez, em um desses deslizantes e errantes passeios, a claridade atingida seja a dele.

(À uma data que me dói, sem prazos de validade.)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Trubunal dos erros

Um dia todos vertem de si as cóleras causadas, ainda que não saibam o porque quando o tempo resolver que chegou a hora. Os pecados escolhidos para serem ressarcidos são então finamente selecionados: justificar o sofrimento alheio como provocado por "desejos e sacrilégios propriamente humanos" não o situa na categoria do "fardo que não se pode escolher", ou seja, o erro não pode ser justificado pela mediocridade de, assim, simples - ser.
Não tenho mais forças para descrever o mal que tuas atrocidades cometidas causaram-me e ainda causam. O aniquilamento da vontade de viver é irreversível? É em vão todo o esforço que faço para inundar-me, por três segundos, de esperança: os desejos positivos e energéticos duram como pilhas desgastadas pelo uso indevido...
Sempre ao fechar os olhos sinto vertigem  Sensação de profundidade. Não sou dona do meu espírito, o corpo é só uma morada com prazo de validade e penso que não será nesta a realização plena, ressarcimento, que o perdão divino será alcançado. No ciclo atual, pago por alguma atrocidade cometida em vidas anteriores. Como tudo é regido por forças superiores, encontro-me neste tempo e da maneira como estou para ligar-me ao destino de outras pessoas e assim tornar possível o cumprimento do plano divino - as existências são interligadas.
Penso que todo o mal que fizestes à mim, fez-me e faz-me pagar pelos erros anteriores, assim como é chegado teu momento de redimir-se - se voltares para meu seio, por mais que o ame como a lua ama o céu, não conseguirei evitar te fazer sofrer. Tornaste-me assim. Como disse, tudo é conectado e nada é por acaso! Tem que ser assim para que o universo continue seu curso. A culpa o fará voltar, a punição será a rejeição? Sou um coelho branco e roliço, saltitando para lugar nenhum... O sofrimento desumano transformou-me nisso, solitária, como condicionei-me a ser, perdi a capacidade de fazer outra alma alegrar-se ou proporcionar prazer de existir.
Jamais superarei...



(Gostaria de engrossar as lentes e não ver com clareza o céu encoberto e a solidão dos corredores. Deixe-me escutar uma última música, como o som das asas de uma borboleta que há tanto não se vê pairando no ar - no meu cômodo vazio.)

Envelhecer


De repente deparei-me com a data de hoje, como um esbarrão que produz um belo hematoma. Esquivo-me do espelho do canto do quarto, para não ter certeza do que meus olhos observam do peito para baixo.
Não se pode convalescer de doenças internas sem que as feridas sejam vistas do lado de fora - uma cruel constatação que nunca tomei como séria. A verdade é que o externo é reflexo do interno, não há como separar essas duas vias tão próximas. O pior de assistir o próprio envelhecer, é perceber que o espírito também mutou, cansou, desistiu - a alma aos poucos apagou o sorriso largo de outrora.
O rosto empalideceu, a miopia passou de regular para grave, o corpo potente e inflamável que sempre foi a imaginação tornou-se esquizofrenia: ótima combinação para não ver como o ser humano é realmente.