quinta-feira, 23 de junho de 2011

Perto demais

Não justifique-se: a calada anestésica da noite fez com que nos encontrássemos.
A lua craquelada por alguma espécie de giz branco, materializou (como se saído da poeira) meu corpo deslizando pela rua afogada, em direção ao fosso de sentimentos - em rota à ti.
Edite caminhava entre tropeços ao meu lado, tragando e tragando, absorvendo sua nicotina, manchando o cigarro de vermelho. Era apenas a segunda noite de inverno e o frio não presenteava-nos, nem sequer notava-se a brisa gelada nas canelas descobertas. Acendi ao olhar tua triste figura na esquina, onde a rua intrépida parecia ter seu fim. Envolvi-me em tontura.
Batíamo-nos - dessa vez tão próximos fisicamente - na busca pelo paraíso extraviado: substitutos adocicados. Dissequei-te por inteiro numa fração de segundo, construíndo versos com cada parte tua, elaborando a sequência de fotografias, baseando-as na minha lisergia. Remexi a solidão por inteiro; oh Edite querida amiga, vamos desaparecer e procurar outra alcova?

O roubo

( Em um dia cinza, não luta-se contra força alguma, mas só porque não há como medir forças com a natureza. Converso com meu espírito, ele parece estar morto, bem como o olhar indeciso do céu. )
Começa a cair a noite, sem haver luz alguma. As grandes construções ativam seus para-raios e sinalizadores piscantes, prevenindo-se das descargas elétricas da mãe natureza e dos pilotos descuidados. Digo: o azul da lua faz-se presente no quarto encalhado no tempo, onde escrevo. Calmaria, sem contrariar a monotonia, ouvidos inértes. Prédios velhos e pequenos também correm risco? Nunca visitara o terraço, comprido.
Então um estrondo, seguido das minhas paredes grosseiramente sendo rachadas e cheiro de concreto em pó, desabando.
Após tudo passado, uma pequena multidão observa a ruína que foi feita do meu pequeno edifício. Uma senhora gorda pergunta-se: como o piloto fora desatento de tal maneira? E em um golpe de sorte, vê meu braço intacto olhando-a de fora de um grande bloco de cimento. Oh, Deus a amaldiçoara com tal visão! Pensou com os olhos entreabertos, que ao mesmo tempo veêm em minha mão um apararelhinho de escutar música.
Rápida como um rato entorpecido pela busca do queijo, toca naquela parte do meu cadáver - agora sem lembrar de seu temido Deus - tomando para si o objeto que era parte do quadro trágico. Ainda tocava música! Não cessara um instante sequer desde que eu começara esse relato, antes do avião debruçar-se no prédio e engolir todos. Ligeira como no furto, a senhora, gentil, presenteia o filho com o tocador de música, no calor de livrar-se da culpa, depois de limpá-lo na blusa e manchá-la com meu sangue.
Observo toda a cena do quarto de sempre, no céu cinza, acabando por confirmar minha certezas póstumamente. Não roube dos mortos! Conceda-lhes em vida o conhecimento de sua insignificância.

sábado, 18 de junho de 2011

Exílio parte 19

Abaixo do clima calmo e sujo da cidade, em faiscante céu nublado, mais um esvaído despenca para dentro da minha janela como um saco de batatas podres. Expele sofrendo, seus males internos a cada dois passos tentados - sem imaginar o quanto sonhei com o momento que rouba-me.
Esmerado momento de aspirar e sentir cheiro de ar limpo nas narinas. Deixara a peça aberta durante horas, cultivando o quarto para tal episódio de deleite meu, persistente: livrara-me por fim, do odor de veneno para insetos e ar farinhoso, que choquei durante um tempo que minha péssima memória não sabe ao certo dizer.
Sou um caso de fruto e atração pelo que é órfão, lamassento. Povoar o silêncio aflito, é o contrário privilegioso dos que precisam de salões cheios e tilintar confraternizante de copos.
"Seria bom ensinar, às vezes, aos felizes do mundo - nem que fosse apenas para humilhar, por um instante, seu tolo orgulho -, que há felicidades superiores à deles, mais amplas e mais refinadas" disse Charles Baudelaire, para finalizar.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Humano e abelha

O suntuoso calor da manhã havia feito Lia queimar. Ao meio-dia, já alguma vitória era conquistada, pois ao respirar acreditava sentir os alvéolos do pulmão em reboliço, preparando sua fuga. E como todo bom desconforto enfermal, ainda perdurava nas maçãs de seu rosto um escarlate de pele chamuscada - contrastando com a frieza dos dedos, provocando fumaça. Febre.
Chegou, com os devidos esforços, ao consultório médico, onde uma esbelta secretária negra trabalhava inquieta no canto direito da sala retângular. Os pés número 38 - calculou - debatiam-se no alto de um sapato marrom que atritava com o piso azulejado. Muitas das mulheres em espera na saleta repetiam o movimento: explícita anciedade. Não há nada novo, pensou, por que tamanha impaciência? Já aderindo à série de gestos ritmados, mal terminando a divagação. Cada mulher conforme seu grau de horror à espera.
O doutor era famoso por suas peculiaridades, dissera-lhe a vizinha ao entregar-lhe o endereço pedindo que fosse (de certo preocupada com todas as vezes que a acolheu em surto pelas madrugadas à dentro). Ora distribuía diagnósticos na velocidade em que a secretária atiçava a lareira, ora fumava intermináveis cigarros na janela entre uma consulta e outra. Tais variações de tempo despertavam curiosidade e singela dúvida em suas empregadas - nos últimos dois anos foram cinco contratadas, e para cada uma demitida uma medida de histórias espalhadas. Era a primeira vez de Lia naquele lugar, aguardando.
Então sentou, sem acomodar o corpo. O retângulo branco exagerado, não deixava-a abrir totalmente os olhos secos. Tantas pessoas transitando em direção à secretária! Todas parecendo despencar em um fosso, que certamente havia atrás da mesa, uma vez que Lia não as via retornar de lá para outro lugar. Junto à tantas outras, uma moça sobressaiu-se em sua calça azul-marinho. Havia um inseto grudado na brancura do terno e ela custou a perceber o inquilino, carregando-o contentemente - sabe-se lá desde onde.
Com um tapa certeiro, lançou-o para o meio do corredor feito de cadeiras, brindando o chão. Agora, já era possível saber que o que contorcia-se no chão era uma abelha, locomovendo as patinhas tão rapidamente - quase invisível. Sabia que o desfecho de sua vida de abelha-de-cidade-grande estava por vir, inevitável: onde andava agora, perdida dos demais insetos no rejunte da lajota, estava em sua via sacra, um lugar pouco seguro.
Pacientes foram e voltaram. Lia esqueceu o bichinho desemparado por longos intervalos, até o olhar pousar nele sem querer, assim que a faxineira escancarou a porta empunhando pá e vassoura. Mas já ao término da limpeza, não é que a abelha gordinha permaneceu sem ser vista? Talvez dentre as duas fêmeas a mais sortuda. Chegava então aos pés de Lia, quase na sola acolhedora do seu sapato, quando a carrasca da vassoura a avistou. Foi levada. E Lia chamada.
Notou as cortinas do consultório, vendo-as do corredor: panos quentes dançando de canto em canto, arrastando a metragem longa de tecido, pêlos e crinas como fantasma. Ainda de frente para a janela estava o médico, com as mãos cruzadas nas costas, despreocupado: tudo em primeiro momento era muito bem executado pela secretária negra. Deitou a jovem moça na cama hospitalar, percebendo logo suas extremidades frias, onde pôs três pequenos cobertores e uma almofada. Abriu uma portinha ao lado, deixando sair um gato peludo que prontamente pulou e deitou em cima de seus pés magros, transmitindo calor mamífero. Cobertor, almofada, gato. Percebeu alguém atrás da portinha entreaberta, sorrateiro, observando-a. O gato que já dormia também percebeu- levantou a cabeça levando as orelhas para posição de alerta: os gatos sempre sabem, pensou. A negra então alertou-lhe: "Relaxe".
"Extremidades tão geladas que parecem molhadas..." disse o médico, ainda sem virar-se. "A cama quente é fictícia - na verdade é um lago." Completou.
Então deu o ar de seu rosto à Lia, amordançando sua boca: "Fiquemos livres de palavras ao vento. Elas, agrupadas, não são na verdade tua expressão. Nem nunca serão - mesmo porque quando abristes os olhos pela primeira vez tragaste o sopro da inibição. Fora infantil, sim, tua insegurança adocicada." E isentos de sílabas lapidadas por perturbações, o médico baixou as pálpebras e subiu-as, lentas, anunciando o olhar nu e denso - que fez-se presente na sala, perfurando Lia. "Rosto boêmio, à menor dança de cílios lancei-te esquecimento! Face desconstruída, de quem apagou as linhas com medo de escrevê-las." Disse, seco.
Levadas da mesma maneira. E ambas nunca mais vistas.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Manhã

O caos está espalhado. Partindo de mim, junto comigo e enturmado com o redor.
Invisível à prole que, viçosa, apressa o ritmo das ruas do centro.
Na Rua da Praia a luz nunca chega. Ao nascer do dia então! A neblina úmida prolifera-se pelas lãs de quem atreve-se a desbravá-la, fazendo surgir - como por brotamento - gotículas molhadas no casaco grosso. São as águas do rio reclamando o território perdido.
Dou então vida à um dos meus passatempos preferidos. Durante grande parte da manhã, enquanto presa em uma cadeira desconfortável, invejo o dono(a) da varandinha alta e arredondada, na esquina. Assegurada por uma dúzia de ferros retorcidos que lembram flores murchas, penso que de lá Mário Quintana ouviria-me. Nunca vi pessoa alguma, sequer abrir aquelas portas emperradas. Como pode? Clareira, templo, lacrado.
Diante do meu infortúnio, abro a mesa redondinha de mógno e a cadeirinha trançada de vime, peço ao garçom chá de cidreira ( pois não possuo condições propícias a um bom café). Então do meio da alameda gigante observo minha sacadinha. Tiro do bolso uma metade de baseado e dou continuidade à ele - vai que esbarrem em mim e acabe de esfarelar-se.
Do meio da rua deixo-me levar pelo hábito e saio a vagar. Aqui estamos nós no começo do meu relato... quando desgrudo os olhos do chão para pousarem na placa de onde estou agora: Riachuelo. Não, não há como erguer a tampa do primeiro bueiro e incorporar-me ao esgoto, minha primeira solução tipicamente humana. Sempre esqueço de desconfiar do meu coração desprezível, acabando tudo da desgastada maneira corriqueira...
20/05/011

Soníferos da peça

Sinto as lascas geladas do novo inverno. Diferente do anterior regado à sentimentos em conturbação - a maturidade é meu fator agravante. Não vivo mais suplícios chorosos sem ir mais fundo. Ando cabisbaixa, em muito transparecendo a vontade de viver que lambe o chão.
É sábado. Em vão, os olhos tentam emergir do fundo da almofada dolorida, com corpo similar a gomos de certas frutas, quente e cegante. A pouca claridade que atinge a retina, é infantil e de brilho fosco, ainda assim capaz de atormentar outros importantes sentidos: o baixo grave da música é uma súplica ondulada de raiva atingindo os ouvidos!
Submeto-me, em momentos pouco espassados, a diversas sensações criadas comumente, na atmosfera febril em descrição. Clara, frigorífica, vermelha e de uma calmaria notável. Aguardo com pavor o instante que alguém abrirá a porta - conexão única com o real que negligencia-me. Aparecem risadas, correntes de ar limpo, pelo orifício rasgado da madeira entram... descendo uma navalha fina na câmara rodeada de cólera espessa.
Compreendo meu existir nos labirintos onde resido, com órgãos pressionados no limite do vital. Por certas horas há música ecoando, sempre dizimada pelo ruído de amplificador na tomada, como se aceso e inerte. Será essa a minha melodia atrás das grandes cortinas de veludo, da madeira? Pois o ruído interno, esse sim, sei que é o silêncio cavernoso que - como disse anteriormente - submete-me a diversas sensações espassadas em curtos tempos: elevação e queda magistral de sonolências e palpitações.
Sou como barco, enferrujado no cemitério do porto: ambientes, cargas e destinos cheios de violinos sarcásticos, que emaranhados no teu sorisso apagado, são tua sombra nas minhas lembranças. Passagens de outrora devoram-me por inteiro, de modo que os membros enraizados no leito aos poucos voltam a ser matéria da natureza. Esqueço de contar tempo, logo o mofo lembra-me.
O gato, ativo pela casa, sorrateiramente rende-se aos soníferos da peça. Meu amado companheiro, bichano ativo, agora entre minhas pernas estendidas. Como um pássaro que pousa nas estátuas da praça. Olha-me descuidado: vamos dormir.