sexta-feira, 20 de maio de 2011

A ruela

Da grande janela do quarto pode-se dormir como em uma desenganada maca - daquelas com rodinhas de borracha - estagnada no meio da rua. Não pode-se exigir muito desses apartamentos antigos e arrematados de leilões, mas confesso que seria um tanto delicioso despertar nas manhãs de domingo ao natural, sentindo os cobertores envoltos no corpo: macios! Sem a rigidez dos lençóis esverdeados das emergências 24h, somados à poeira magra do asfalto.
O diurno barulhento não passa de sons urbanos. Concreto, concreto, concreto. É uma ruazinha com atividades e turnos definidos, distintos e peculiares. Mecânicas, restaurante, albergue, posto de gasolina, fábrica de caixas e fábrica de biscoitos entopem o espaço vital com cargas e descargas até o último feixe de sol. Não citei prédios residênciais por um motivo simples: o apartamento de onde falo é uma espécie de alcova suspensa no ar, imperceptível e escura.
É sob o reinado carrasco e sensual da noite que a atmosfera muda. Um caro prostíbulo, carros exibindo com gosto urros primitivos nos rádios. Esse é meu plano de fundo para a verdadeira tortura nupcial das madrugadas: os ruídos. Distantes, carrinhos de mercado correm tropeçando na pista esburacada, fazendo-me imaginar a queda áspera. São catadores voltando para casa e a rua torna-se acesso rápido para a vila da avenida seguinte. Certas vezes famílias inteiras passam, esfoladas pelo vento do inverno.
Os velhos canos de cobre entram em estado de alvoroço, febris por não quererem pertencer às paredes por muito mais tempo. Velhas catacumbas do prédio.
Às vezes o cheiro de etílico quase puro é tangível, pois aqui do quartinho é tão espesso e opaco quanto a bruma que pela manhã cerca o Guaíba. São viventes das sargetas que cruzam minha ruazinha, ora quebrando garrafas, ora emitindo resmungos em seu dialeto bêbado. Aliás, são dois ou mais os idiomas balbuciados aqui: há ainda os gritos esganiçados de chinas enraivecidas.
O mais curioso ocorreu-me durante um dos meus sonos que levam-me à beijar a maca e o asfalto. Vinha trépido do fundo da rua mais um pobre borracho, par incompleto de sapatos e nem mais a garrafa entre os dedos - em algum lugar a deixara. Eis que os balbucios eram-me familiares e pela primeira vez decifráveis: tratava-se de um moribundo do tipo fanático religioso. Gritava despertando o gato Syd e as corujas do salso chorão: "Édson é um bom homem! um bom homem!" e ameaçava despencar no chão e por pouco não fora atropelado por um carro vindo do cabaré. Temi que também caísse em cima do meu corpo inerte. Esbravejou reproduzindo - ironicamente- o sotaque carioca dos pastores evangélicos e afirmou novamente ser um homem bom e digno da salvação. E deixei: deixei ser o cabide de madeira onde ele guardaria as roupas sujas, começando a mobilhar o quarto da maca.
13/05/011

domingo, 8 de maio de 2011

Exílio parte 18

Bonita e fresca manhã de sábado. Pode o final de semana vir e salvar os demais dias passados? O humor agradece ao sol - o Astro Rei sempre descongela o pobre corpo que em depressão desmaiou. Que prazer imenso!
Ouço um canto que vem detrás de todas as camadas de concreto, dos nomes, do ar denso da continuidade da noite. Mas essa sou Eu.
Ela, dorme em uma exaustão sem medida, diria infalível meio de lembrar-se muito mais tarde da noite anterior. O relato póstumo torna-se tão mais compacto, já colado no travesseiro salivado. Quem precisa ter o trabalho de se questionar, oras?
Desmaiada e alva como se ali nao residice vida há algumas horas, acorda esquálida e vejo os cabelos feito Medusa soltos na camisola rosa.
(Para Melissa)

Na casa de Lia

Agora passada a noite, Lia questiona-se sobre a ilusão que vendara seus olhos na madrugada, onde deparara-se com uma miragem cinematográfica de diversão, idealizada pelo abismo que a separa dos demais jovens usuais: todos aqueles que rondam as ruas e enchem as casas de risadas celebrando a pele lisa e os hormônios em polvoroza.
Durante todo o dia que antecedera a noite fora assim. Enganara os próprios sentidos, logo que as verdades inquestionáveis que conhecia sobre si mesma apareciam e tomavam a ficção criada. Lia é consciênte da própria distinção, mas não conseguira impedir a vontade subconsciente de resgatar resquícios de uma juventude clichê - talvez proporcionar aos amigos momentos satisfatórios sem privações. O grande tormento é que em termos de minar o território em que vive, Lia é superior ao instinto caseiro de um gato.
Logo mais os convidados foram chegando e entre eles figuras anônimas para ela. O desconforto encaminhara-se com o zunir das vozes masculinas contra as paredes, os passos grossos, o sentimento de violação íntima! Aquilo tudo emprestado, nada nascera dela - além do irônico desejo de provar como é ser verde na idade em que encontra-se. Uma passada rápida de olhos e o vil e esverdeado mundo superficial onde reside a maioria é provado.
Teve âncias de libertar a raiva encarcerada, ligar as luzes, desligar a televisão - onde rodava um filme demasiado complexo para os indigentes - e correr todos dalí camuflada pela loucura febril. Mas como era de se esperar, Lia não escancarara seu rosto e varrera-os com sarcasmos não escolhidos à dedo. Os seres pensantes dentro de si implodiram-se, o sexto sentido lançara confetes ao céu. Que bela culpa de não tê-lo dado ouvidos agora Lia carrega!
Ficção. Barres carregados de amigos, cerveja e conversa são descômodos. Preguiça de travar aproximações, diálogos. Ócio para péssimas interpretações; conflitos consecutivos dos muitos personagens que cada parte do corpo criou para observadores atentos.
Ela retalha-se permanecendo homogênea.
No dia seguinte arruinara os planos e "descartara" a rotina para apreciar um dia de ócio comum e completa:
- Na próxima vez, continuarei somente com o ócio permanente mental. Ócio físico não significa ócio criativo, que de costume agrada-me demais! Não fujo do tédio para evitar o enfrentamento com a existência e não perturbar-me. Tudo é pouco, tudo é pequeno, demasiado fraco(...)