sábado, 9 de março de 2013

Sapatinho aspiral

Fora preciso  calçar sapatos de dança folclórica russa dois números maior, por conta de um tornozelo superficialmente exposto. Incômodo superado às pressas pela manhã, sendo o rumo do dia extenso e pensado com clareza somente após a blindagem de protocolo, baseada em duas xícaras de café. Montada em alguma espécie de animal terrestre-aquático, caminhara ao longo das horas arrastando retardo nos passos - pés presos em dois cascos de tartaruga folgados.
Em fusão delirante com o desejo de ser somente espírito errante, quando dera-se conta de que a vontade não era tão eficaz à ponto de vir a tornar-se real, entrara em uma caverna estreita e calada. O único eco era o estrondoso ruído de um balanço que peregrinara pelas ondas sonoras até conhecer seu fim naquela abóbada ordinária e seca.
Para sair,  árduo combate na calçada - de lábios de azedume feito Saara e carne infrutífera. Em síntese, ser inorgânica é sonho. Até mesmo o amado frio perdeu-se chocando-se com ondas de calor psicossomáticas da pele. 
Cólera que apossara-se em forma de palma de mão enrolada no coração! Costelas impiedosas trancafiando o músculo visceral. Passam-lhe por debaixo das grades costelares um único indício de luz natural: pão d'água.  Aquela palma de mão nunca deixará a mesma posição? A queda das barras ósseas deveria acontecer em um solitário golpe certeiro, que concederia a liberdade ao espectro  prisioneiro - exilado.
Conduzida pela memória arrombara a porta de casa. Tirara as meias, há sangue recente manchando os dedos: espanto pelo incompreensível que verte da pele intacta! Pensara que tivera origem no desconhecido pois a fissura era no tornozelo! Nas lágrimas de bocejo sentira o sabor tão amargo do fel da noite, da intragável memória de amor pairando. 
Sangue recém coletado, virgem na pele enfurnada onde jaz a ausência solar por toda a infinidade cósmica. Jardim dos pesadelos da existência em que chegara amparada pelos sapatinhos que vestira pela manhã.
Excomungada do presente, calejada na alquimia arteira e nem por isso menos membra do grupo de risco ao colapso. Ouvira os mais variados sons - parecendo-se com a bomboniére sortida que é sua organização mental.

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