segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Lúcia e o espelho

O quarto ainda cheira à perfume feminino e doce - embora confunda-se agora com o simples odor de creme removedor de maquiagem. Fica um cheiro enjoativo na pele que enoja-a. Dois sabores diferentes para o olfato, dois extremos de humor que jamais separam-se e sempre seguem-se.
Lúcia sentia vontade de transformar sua tarde tediosa em algo proveitoso, só dependia de si mesma. Pensou, como se súbito: vou ao cinema. Empolgou-se procurando os filmes em cartaz, ah! Era tudo para acabar bem o dia lento! Assim que decidiu-se, lembrou do dinheiro para o ingresso: ora! Essas coisas deveriam ser de graça! Reclamou. Havia na casa vários "pontos" de moedas escondidas ou locais onde provavelmente alguém as esqueceria. Lúcia era só entusiasmo e logo partiria para a melhor parte da preparação: a conversa com o espelho.
Esse momento de confissão com o próprio reflexo é decisiva. Ele tem o poder de intensificar o êxtase ou reduzi-lo a zero. Primeiro os cabelos, que mereciam um belo topete ensaiado à dias e vagarosamente aperfeiçoado. Pensou em não dar muita atenção para a pintura do rosto, afinal, era só uma ida ao cinema, mas logo o resultado satisfatório do cabelo a fez mudar de ideia  Risco preto nos olhos verdes e bastante rouge nas maçãs do rosto. Para concluir, o velho batom rosa claro.
O rosto pode ser um problema para a mulher, mas nada comparado com o corpo. A roupa era rotineira, daquelas que não exige muito das formas. Mas ele estava lá, implacável: o espelho atirava-lhe flechas e novamente isso se repetia - incansável e severo.
Subiu pela garganta o pânico de a calça ficar apertada. Será pela lavagem recente? Iludiu-se. Logo começou a análise detalhada, até mesmo os braços finos e delicados estavam mais cheios. Lúcia tinha paixão pelos ossinhos do peito e dos ombros, os olhos afogavam-se em lágrimas ao imaginar-se sem eles atenuados. O que passou-se já não importava mais... O classicismo era ditado assim.
Arrancou as roupas e pôs-se a vestir o pijama largo, que dava a impressão de magreza. Ele não era "um" espelho, nem vários- espelho é sempre O espelho. Maldito objeto condenado à revelar a realidade! Tão mais saudável viver enganada.
Com alguns pedaços de algodão tirou a maquiagem, e cá estamos em como iniciou-se esse relato. Precisa sair do quarto, abrir a janela e porta, quem sabe tudo é levado pela corrente de ar...

Um comentário:

  1. Talvez seja o espelho mental que esteja te iludindo, não? Fica uma hipótese que não deve ser descartada...

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