quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Renascer

                                  Depois de muito andar, Álex chegara à pequena chácara onde passara a infância. Pulara o muro descendo pela figueira centenária - a mesma do pátio dos fundos em que pendurava balanços nos galhos. Viera em busca de paz para seu espírito, guiado por uma batuta de maestro flamejante - que sempre estivera um passo a frente de seu olhar. Ela regera o caminho até a paisagem de seus anos cruciais perdidos: chegara e o berço estava quase irreconhecível. O rio que banha a propriedade subira de maneira absurda, invadindo já a casa...
                                   Com o mesmo objeto com que construíra sua jornada pela música - vocação com que nascera há vinte e quatro anos atrás  e afiara  a criatividade artística - abrira caminho para dentro de seu corpo físico: remexera os bolsos da calça, pegara o canivete e moldara o instrumento até torná-lo como flecha. Abrira uma uma fenda em sua veia. Um corte horrível na dobra do braço. Logo quando tentara relaxar deitado de lado, ele comprimira-se, adormecera.  Perdera a conta de quantas vezes esticara o membro já nos primeiros minutos de pós-corte, arrebentando os pontos. Todas as posições cansaram tanto que forão vítimas fáceis do esquecimento. Desconforto!
                                 A  sutura caseira desfizera-se em questão de  uma hora. Encolhera-se como filhote no útero da mãe, o sofá rústico o abrigando como feto, coberto por uma capa branca - a placenta. Deixara somente o braço esquerdo, que dilacerava de dor, estendido para a frente em posição de quem aguarda uma transfusão de sangue ou hemodiálise.
                                Se haviam justiceiros em plantão noturno dispostos a fazer sua purificação, ele não soubera dizer, somente repetira fielmente: "Não confio nem mesmo em meu pai", com a malemolência na voz de quem desacredita no próprio renascimento - mesmo sendo sua glória tão desejada. Tomado por obscuridades, escolhera esse extremo de limpeza e, caso contrário,  será o final da linha.
                               No sofá aguardara sua mãe vir conceder-lhe o carinho necessitado. Dias passaram, o corte aberto vertendo secreções de odor forte. Ela não viera nem mesmo para pari-lo - quanto mais para curar seus traumas e trocar-lhe o sangue. O único humano que aparecera fora o filho do antigo caseiro, que tirando-o do ventre fantasioso, mergulhara a cabeça de Álex na água que invade a casa, até quase provocar a perda total dos sentidos. Sem pena de adulto, seu primeiro nascimento acontecera novamente! 
                               Gritara pela sala inconformado da desgraça destinada, assistindo a água apossar-se de cada canto do terreno, sugando e subindo até tudo que ainda existia desaparecer. Ele sucumbira enfim as recordações, encontrando o fim junto delas. Era tarde demais para renascer melhor.

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