quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Pó de vidro

Vidros não temperados como facas, ferragens de aço e ferro como poderosas navalhas. Começo pelo final a história de um acidente que ocorreu nas ruas vazias das frias madrugadas de Porto Alegre, em uma noite qualquer - pois para o acaso, não há o diferencial, não existe o escolhido previamente. E mesmo não chamo o acontecido de destino, pois seria tolo culpa-lo por imprudências já conhecidas. Recordo hoje, lembranças de uma madrugada aterrorizante que Lia enfrentara.
Ela conhecia bem para onde estava indo, mas só sabia desde o princípio que não queria ser levada - e mesmo assim não impôs com a veemência necessária sua vontade. Demasiadamente exausta para usar todas as formas de expressão do corpo, nada estava a sua disposição. Penso que fora arrastada pelo medo - sentira medo do rapaz, seu falso companheiro, violentando-a psicologicamente. Não decidia se emudecia ou entrava em convulsão.
Por volta das cinco da manhã os dois deixaram para trás o apartamento confortável de um casal de amigos, embora os sinais de insanidade do amado de Lia já estivessem manifestando-se, o álcool fazendo-se presente, foram-se. Ela percebera a maldade com clareza logo depois ao olhar seus olhos de lobo, em cada palavra dita - vinda da obscuridade de sua alma. Era como uma criança indefesa ao lado de um predador à solta, dirigindo um carro e vertendo sangue dos olhos. 
Via-se constantemente como espectadora de fora, captando as cenas com perfeição assustadora. Pensava em que lugar aterrorizante estava, começando a chorar- desesperada - quando o carro parou e ficara literalmente sozinha. Viu-se naquele submundo deprimente, escuro, íngreme, nenhuma ser vivo atrás e na frente,  somente um cachorro ao lado dando seu passeio noturno. Temia por não presenciar a próxima manhã, calor e frio passavam por seu corpo como correntes elétricas, uma espécie de febre interna a fazia transpirar.
Sentia toda a violência que aquele lugar ostenta, como troféu nas mãos de quem faz do mundo uma casa ainda pior para se viver. Em imaginação, via as pessoas-zumbis deslizando pelas pedras da ruela, montando no carro e desejando se apossar de qualquer material. Tornou-o uma esfera inviolável... Tão frágil em realidade. O corpo não acompanhava o ritmo das lágrimas e o frenesi de seu espírito - permanecia parada, estática sem mesmo mover os lábios para falar. O que os levara até lá, não causou um apagamento ou mera euforia instantânea, jamais seria justificável. 
"Estamos no inferno, amor." fora dito para Lia como que para ilustrar seu pavor. Para seu amante infiel era pura diversão, antes e depois de voltar ao carro e finalmente arrancar do beco nada agradável. A frase fora expelida, para ser mais exata, em pleno declive do morro. Colocara tudo em uma gôndola, passando pelo rio de almas, rodando para o reino dos mortos. Misto de bicarbonato de sódio, tripas, anfetaminas, poeira, farinha de trigo e pó de vidro - tudo quase diluído. 
O caos reinando. Lia escutara gritos vindos do inferno em total solidão - clamando suicídio. Não seria prudente o casal engatar uma nova tentativa de vida, o universo fora muito coerente: as mãos que seguravam o volante brincando falharam e o choque frontal contra outro carro estacionado fora fatal. O sangue que fervia, fora para o congelador - em forminhas- para solidificar-se na gaveta do purgatório. Não houve som algum de teclas de piano ao término... Somente as gotas do sangue chocando-se, tilintando pelos vidros quebrados espalhados pelo chão.
Gélida, Lia tentava debater-se mas o corpo físico não respondia. Saiu para fora, podendo sentir toda a dor de sua carcaça, retalhada por navalhas, sem intenção de lapidá-la. Enjoada, via do meio da rua seu corpo ainda sentado no banco do passageiro, com os lábios vermelhos do batom que usara para sair.
11/08/2012

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