I: Corpo autônomo
Há algum tempo Lia deixou de recitar ao vácuo "Eu te amo".
Diante da solidão, não inventa a própria multidão de espectadores, pois naquele palco trancafiado no passado, ao arrastar o corpo feito sílfide, flutuou para a morte interior.
Os brados do piano, urros da alma dos antigos amantes, não deixaram jamais de entoar seus infernais acordes. Ela esteve diante da cólera e foi pega, e na época, era somente lobo enfraquecido - foi diante dos olhos oceânicos que transformou-se em cordeiro.
O cheiro da morte ronda-a, reside ao seu redor. Desabrocha a cada respirar envenenando as tentativas de ser viva: do coração, só resta no peito um pequeno pedaço, suficientemente simples e minoritário encarregado de bombear sangue. Líquido, afinal, de espessura fina, esguia: água corada que não necessita de grandes esforços para correr pela veias, bloqueadas em muitos trechos por aranhas com suas enormes teias. O resto do órgão vital, para conhecer onde jáz, basta consultar a velha caixinha de música... Trancafiou-o lá para bater sózinho, viscozo e vermelho. Remendou suas artérias aos envelopes, conectou-as às cartas de amor - e alimenta-se desde então das emoções lá contidas e da marionete de bailarina, que junto dele, abaixo da tampa de mógno, hiberna sem destino ou esperança de acordar.
Porém o elaborado plano não obteve êxito. O pouco que ainda reside envolvido em suas costelas também é enfermo: respinga sangue putrefado das cicatrizes arroxeadas. Jamais curou-se... Possui, no mais, livre arbítrio e autonomia do resto do ser que é Lia: não quer secar por completo e também não livrar-se dos males. Todos os fungos existêntes, fazem os sentidos corporais sofrerem! O sistema nervoso briga e o coraçãozinho em resposta estréia sua taquicardia, temida! Impulsiona os nervos a enloquecerem.
Cada parte age por si só.
Fragmentos que escrevem sua própria história baseada em silêncio vertiginoso.
II: Moléstia da alma
O coração explodir-se-á. Quer, pelo obséquio, esvaír-se em sange.
Em defesa, o corpo permanece em posição fetal para esquecer as passagens de tempo: aos poucos a memória recente torna-se branco, extinguindo assim a de longo prazo. Lia está inconsciênte.
O amanhecer aproxima-se com os pássaros cantando - logram vivacidade, ou a alegria do moribundo é que significa a degradação lenta dos sentidos? Tanto já divaguei sobre sua alma, aprisionada pelo esqueleto colado em músculos! O espírito quer liberdade... Basta de náuseas em suas demandas demasiadas, alívios espontaneamente forjados! Por sua vez não servem mais... A vitalidade já é indiferente.
Espera sem fim pelo desfecho do tormento! Não consegue mais respirar; a partida ainda gostaria de tardar?
[Uma das piores coisas (se não a pior delas) que pode ocorrer à pessoas como eu, é ser despertada pelo amor...
O ser amado jamais te amará em parecida intensidade.]
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