quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Célula

Sobrevivo de pequenas mentiras do cotidiano. A começar pelas perguntas sempre inclinadas para respostas infames, onde digo-lhes: "Sim, estou bem" sem fazer questão de ser convincente - se não posso explicar-me, que fique subentendido.
A fala é mais um mero instrumento de expressão do ser humano, e não desmereço sua utilidade, apenas digo que é necessariamente desnecessária. A voz é exalada pelo corpo: o brilho do olhar, no andar cabisbaixo, a pele esguia - quando o sentimento não quer, o físico repudia. O mais próximo que a voz pode chegar da emoção, só os que receberam a dádiva do canto podem assegurar a existência: o corpo como próprio instrumento musical. E então ela, combinada com a sensibilidade da expressão atinge as sublimes atmosferas - o que nada pressupõe "palavras", que no arrebatamento do canto são somente acompanhantes do som afinadíssimo.
No meu ciclo intermitente de existência, não aceito que digam-me Esquiva. Penso que não sejam necessários balbucios comuns das cordas vocais - pobrezinhas! Aprisionadas no poço escuro que é a garganta. Para meu infortúnio, o mundo é povoado de péssimos observadores e exatidão terrena... A sinceridade passa despercebida, um dos motivos pelos quais a mentira prolifera-se e poucos ludibriam muitos. A humanidade despreza os sorrisos, expressão simplória, porém de grande magnitude, para ceder espaço a contatos impessoais.
Torno-me aos olhos mundanos uma arrogante. Pergunto-lhes: não podem ver mais nada? Diante de vós jaz um corpo transparecendo sintomas de seu interno! Hoje escutei a seguinte afirmação - e digo escutei, fazendo menção ao que anteriormente disse sobre a fala - "És um zumbi". Fiquei menos enraivecida, é bem verdade, pois fora uma observação seguida de afirmação. Observações são ligadas muitas vezes à fantasia e isso severamente agrada-me! O personagem zumbi, morto-vivo, até desconfio que no passado fora inspirado em uma criatura parecida comigo.
Mas nada disso muda os olhares depreciativos e inundados de desgosto que são-me lançados. Por conseqüência, meu corpo tornou-se uma casta insuportável de se habitar, desfazendo-se em náuseas e febres. Desejo o fim... Extinção dos traços que inevitavelmente carrego no interior das minhas células! Tudo acaba por ativar um campo paralelo ao meu redor... Não sabem que possuo terminações nervosas no interior dos vasos sanguíneos - anomalia conseqüente, para o corpo provar aos demais a existência de problemas psíquicos, extra-materiais.
Meu espírito é permeável, embora auto-suficiente: longos anos de exercício. A solidão das células é uma saleta cheia de conseqüências do meio enfileiradas. O ambiente plasmático tem em suas paredes vertentes de água salina - jorram lágrimas.

A célula é inundada.

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