domingo, 6 de maio de 2012

Ressentimentos

                       No ântro da famosa decadência,  local de tantas faces e lembranças ainda degustadas com vingança, Lia esperava com o vento gélido rachando a pele do rosto. Metia as mãos por entre as pernas cruzadas, vestidas de preto. Na cadeira vermelha de plástico, observara que o bar ainda estaria longe do auge de seu movimento - as pessoas possuem o imaturo costume de sair de casa as onze horas. Sentira preocupações desnecessárias, quisera fugir do pânico das paredes fechadas, dos familiares adquiridos: buscara somente a companhia de quem a deixasse livre e haveria apenas um pequeno grupo, seletíssimo, em que não precisaria dizer absolutamente nada, não haveriam medidas a serem tomadas: brancas de neve e preto, amigas suficientes e confidentes.
                           Em cerca de meia-hora, o habitual surgira: o que vira eram pessoas frágeis e incompreendidas. Felicidades forjadas, carências sendo expelidas pelos póros. Chegara, loira alta e de rosto bolachudo, uma jovem mulher sinônimo de futilidade e síntese da pior falta de escrúpulos. Ora, Lia imaginara-se debatendo-se com aquele ser tantas vezes! Impressionara-se com a leviandade do olhar da garota e resolvera manter oculta as farpas do passado - ela deveria ter esquecido. Pedira para sentar-se à mesa, visto que não havia com quem desenrolar sua língua no momento. De bom grado, Lia lhe estendera a mão em gesto de "acomode-se" e virando um uísque barato inciara sua conversa.
                         Citara-nos seus dois anos de casamento, cintara-nos seus planos fantásticos para o agora e depois. Expectativas ditas com o calor de quem não superara um término de relação e precisa doar glórias à qualquer indigente, fantasiando que seu ex-parceiro venha a saber seu êxito. Maneira de falar que enoja - já dissera que em resumo ela fora e é o oposto de nossa protagonista? Lia admite descontar o todo moribundo em uma quase unânime figura, de Afrodite de faceta mundana, de caráter mesquinho, baseada  no sexo. Volúvel.
                        No ápice, referira-se a uma antiga história ocultando nomes e não haveria como a espectadora conter-se. Cabe ressaltar que deixara durante toda a cena o copo de vinho entrelaçado pela mão direita, anelada de prata... Também tem seus momentos de birra feito adolescente! Porém já era de se esperar que de sua figura não exalasse nada mais do que tentativas de humildade nos gestos. Melhor guardar as palavras ásperas para si: passar reflexões como lixa na pele rosada de alemã não traria contentamento. Então apenas dissera-lhe: "Não haveria problema algum em dizer o nome da tua companhia da noite em questão, ficou com medo?"
                     Nada mais vira do que alguém pobre de espírito, aspirante a artista justificando para quase desconhecidos suas falsas virtudes. Fora para sua "balada" tão esperada, da mesma maneira que surgira há uma hora atrás. Lia ainda sente-se reduzida, mas bem sabes que descontar em velhas e escrachadas figuras não faz sentido algum.
                     Por fim, esquecera a carteira de cigarros ainda cheia na mesa para fazer-lhes companhia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário